sexta-feira, 10 de maio de 2013

Escrever é não ter nada

Escrever é não ter nada.

Escrever recompensa pouco, ou melhor: aos poucos. A confecção laboriosa das minudências não mais nos intima; não no que essa palavra se resguarda em nosso íntimo, ao menos. Reduzido à histeria do apelo, parece-me que o ofício da escrita tem-se ocupado, cada vez, mais de produzir frases e pensamentos potentes, imagens vicejantes e encantos fulminantes.

A intimação que me interessa, no entanto - e não posso considerá-la como a intimação verdadeira - é antes aquele retorno sereno e contemplativo ao íntimo; a literatura como processo, aquela que eu conheço, é, antes da produção de qualquer coisa, o seu oposto: a sedução. E não falo daquela da conexão e dos traquejos lúbricos, mas a do fazer advir de modo velado, trazendo sempre por baixo do movimento.

Quem escreve, em aparência, não tem nada; a literatura, sempre em contrapartida, é a suspensão mantenedora desse nada - não aquele de um vazio perpétuo, mas o da dissuasão velada da explosão, o nada da ironia fina que, ao que menos se espera, subtrai o segredo demoradamente erigido ao longo de páginas e páginas como um truque de mágica , abandonando o leitor, embora ainda segredado, à trama do impossível.

Escrever desespera de súbito, subtraindo sempre a propriedade da atenção em sua irrupção velada.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dormimos sozinhos


Talvez nossos problemas nos cheguem em um suspiro naquelas noites recalcitrantes que insistem em nos abandonar à solidão de uma meia luz, seja no banco de trás de um carro desconhecido, na estrada, seja nos confins de um quarto escuro, o nosso ou o de uma outra pessoa que nos acompanha por estes longos instantes de brevidade. A unidade do problema, creio, não é a angústia, mas a inspiração e a expiração com que sequencialmente procuramos compreender este mundo que nos cerca e desejamos sua recíproca compreensão, apanhando nosso problema em seu colo até que adormeça.

Talvez a solidão mesma seja o problema, esta solidão teimosa que torna sempre a se manifestar, não importa o quão recorrentes sejam os bons momentos ou as amizades. Estaremos, no final das contas, invariavelmente sozinhos: seremos nós por nós mesmos, mal-adormecidos por camas velhas e a enfrentar um destino outra vez insípido. É noite, as luzes se apagam, o vento sopra, a chuva cai e lá estamos nós, mudos e demudados, observando a chama das velhas fotos coladas na parede que lentamente se esfuma, enquanto brota no quarto um negrume e  torna-se aconchegante o vazio frio da cidade. Não haverá bom livro, bom filme ou boa música, estarão ausentes os amigos e será a própria ideia de afeto tão incerta quanto o amanhecer — que, desejamos, nunca chegará. Estamos com nós mesmos, talvez bem onde não queremos estar.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Somos todos gênios

(ou Título alarmista com conteúdo irrelevante)

Quando a noite cai, somos todos o mesmo. Não se trata de um prófugo amálgama humano que, sem rumo, dissemina-se por todos os becos e ruas da cidade como ratos; não se tratam daqueles que transpuseram incólumes uma cultura altaneira e empáfia e empenham-se hoje em uma iconoclastia ácida e vingativa ou mesmo daqueles renegados e escarrados por esta cultura; não somos marginais, não somos remanescentes ou sequer resistentes. Configuramos, meus caros, uma branda e alva massa sita na desídia, a excrescência inócua do império humano, o câncer irrefreável da reciclagem e da transformação. Somos gênios e portadores da messiânica filosofia do porvir, herdeiros consanguíneos dos mestres e dos soberanos, atilados nas finas artes do diagnóstico e do prognóstico que atingem os píncaros da liberação e da neutralização nas mesas de algum bar, em algum reduto urbano que acomode nossas pernas frágeis e nosso corpo mórbido. Não somos? Não temos tudo, senão aquilo que nos falta? Ora, acusar-me-ão de afiançar uma proposição demasiado óbvia, mas não somos aqueles que carregam a cruz da ausência e da vontade em um mundo onde tudo já está feito? Acusar-me-ão de não o poder provar e estarão certos. Estamos, afinal, sempre certos: somos a sombra hipereducada de um projeto resplandecente de futuro; a semente do prodígio em uma incubadora full HD e, decerto, aprofundamo-nos em todas as teorias, desbravamos todos os continentes e imergimos nas obscuridades da consciência através de pacotes turísticos de primeira classe, esterilizamos a escória e empunhamos uma simbologia esvaída com aparato. Sim, meus senhores, somos os melhores e os bons pensadores, somos os designers do espaço e os engenheiros esclarecidos de uma opulenta maquinaria social — o termo deve ser utilizado — que nos retroalimenta e confere destino. Núncios do engajamento dissuadido e do majestoso pensamento radical, podemos flanar pelo mundo hoje sabendo que eles nos absorverá em mídia digital, com o devido espaço para anunciantes estrategicamente convocados de acordo com os interesses do público. Podemos ter a certeza hoje que a nossa voz será ouvida por aqueles interessados e que nossa mensagem encontrará ouvinte otimizado. Juntemo-nos hoje, meus amigos, pois juntos reconquistaremos o mundo detrás de uma tela de um palmo e compartilharemos nossas esperanças e desesperanças. Reunamo-nos, companheiros, não faltarão a cerveja e as boas ideias, o dinheiro entrará e a arte permeará as ruas, pois tudo no mundo confluirá com o gênio e com a boa vontade. Todos sabemos, somos bons. Nossos lugares estão guardados. Hoje, contudo, esperamos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Vinte e três

Agrada-me partir na calada da madrugada enquanto o sol, na escuridão, ainda se avizinha. A névoa negra que paira sobre a estrada é atravessada por centenas de faróis lampejantes que, se não riscam o lugar ele mesmo, riscam a memória enquanto o dia, em crepúsculo, ensaia-se antes da alvorecer. Habituei-me nestas semanas a estar na estrada, normalmente em algum banco de ônibus, em conversa com alguém que me será sempre desconhecido, tanto no mormaço pesado da tarde quanto no frio silencioso da madrugada.

De onde vem e para onde vão todas estas pessoas? Não sei se está em questão a jornada — não, ao menos, como um suposto caminho vital de cada um que nos apanha os fragmentos; talvez como um jornar, um ter dia ou dar dia e, pensando assim, não posso deixar de considerar que estes desconhecidos, estes estranhos, estes outros, todos eles temos dia junto, adiamo-nos em um ônibus, em um carro, em um ano ainda um pouco enferrujado como se a vida, parece-me, nunca fosse aqui e nunca fosse agora, como se ela demandasse sempre um pouco mais de esforço, de empenho, de crença, de Deus. Mas, tudo bem, quando se pisa o chão batido na pressa de o dia não nascer, para trabalhar com uma muda de roupas e a recomendação da família, acho que não há problemas em acreditar um pouco em Deus.

Parece-me, conforme se completam estes 23 anos, que esta é a trilha do desaparecimento e que talvez eu esteja ficando velho para completá-la — já um pouco tarde demais para morrer cedo, um pouco amargurado com a tentativa de deixar de ser um menino para ser um homem, um longo e inútil processo de suposto amadurecimento de devoção. Sim, a vida há de recompensar-nos por adiarmo-nos na solidão: do alvorecer ao ocaso, como se as questões saíssem de lá — mesmo erradas, mesmo sem respostas — e como se pudéssemos tudo responder e encerrar com um pequeno emprego de sinceridade, como se, no final, apesar de toda compaixão e ternura, alguém fosse verdadeiramente segurar-nos a mão e acompanhar-nos. Não, restarão talvez nossas pegadas, as marcas e as sombras. Serão os vultos que darão prosseguimento. O buraco negro que nos permeia, este talvez devamos preencher com a pressão dos anos — é uma boa admoestação para suceder em não nos devorarmos, a nós mesmos ou uns aos outros. Isso ou inebriar-se de álcool, não de cores, amores e belos. Quando termina o dia, estamos sozinhos.

Assim, fazem-se vinte e três anos de um único dia que parece ter-se repetido sempre e sempre, o velho dia, com suas estradas, viagens, crepúsculos, sonhos, decepções, desejos e lágrimas. Um amigo me deseja: “Tens direito a mil e um pedidos, fá-los lentamente.” Peço, então, a compreensão. Eu a desejo para mim mesmo: não espero ser compreendido por amigos, conhecidos ou desconhecidos, mas desejo compreender-me neste vazio molenga, que não consegue por sua marca em nada, que quer como último desejo ser capaz de não desejar nada, de não ferir ninguém e de, neste longo e demorado dia, entardecer.

Guilherme

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Quente calmaria de vida usada

Acordei em uma noite quente de um pesadelo frio. Não, não. A noite era, ela mesma, o pesadelo; não tão a noite, creio, mas o pouco que eu tinha para preenchê-la: um quarto imundo, latas de cerveja espalhadas pelo assoalho e um velho ventilador, tão enferrujado quanto eu, cujas articulações rangiam tanto quanto as minhas. A poucos passos da cama, a televisão improvisada sobre uma mesa improvisada, em posição de destaque no cômodo, dava-me a rir: o quartinho mirava-a do mesmo modo como eu tantas vezes mirara o quartinho ou mesmo a vida. A imobilidade do mobiliário, no entanto, não parecia sentir-se agredida pela leveza e pela luxúria das imagens; uma mulher desfilava em roupas de baixo negras e, enquanto deslizava suas pernas para meus olhos, um jazz suave (um jazz qualquer) preenchia o quarto, partindo das pequenas caixas acústicas do aparelho e arranhando as paredes. Uma poderosa voz masculina, daquelas que poderia despir uma mulher em seu entoar, recobria o jazz e anunciava as meias. Eu as compraria e, tenho certeza, o mobiliário hipnotizado também o faria. Se pudesse, rastejaria para mais perto daquelas pernas, as latas, a cama, mesmo o ventilador velho, ávido por mostrar o pouco de juventude que resguardara, ávido por descontar aquele tanto de juventude nas pernas bem escondidas por detrás daquelas meias. As lembranças, o mobiliário também as tinha e, talvez fosse minha presença ali, era impossível duvidar que a exata disposição das peças naquele quartinho não fosse uma chave para liberar um lugar recôndito na memória. Era o arranjo, eram as pernas e era o jazz de vitrola arranhada. O quarto todo — eu incluso, pois nada mais era senão elemento da configuração — era um imenso portal. Eu o atravessava sempre que dormia, mesmo que em sonhos, mas o atravessava. Não há de ser muito, mas, se o quarto falhasse em por-me a dormir, sei que a cerveja não me decepcionaria.

Como a televisão, eu observava a vida deslocar-se por minha janela. Eu conseguia visualizar um letreiro luminoso e esporadicamente apanhava alguma pessoa que se deslocava apressadamente por aquela ruela escura, possivelmente em busca de drogas ou sexo — provavelmente os dois. Aproximem-se, eu lhes dizia em pensamento, aproximem-se, minhas vistosas pernas envoltas em meias. Como o narrador, a noite as anunciava, as despia. Como o mobiliário, eu consentia com tudo, eu as compraria, eu me arrastaria para perto delas se pudesse. Era o meu resguardo juvenil que me impedia, eram as lembranças de infância — quiçá eu as tivesse bebido ou abandonado com alguma garota, estou convicto de que daria algum barato ou que serviria de presente ilustre; não! era minha humanidade e eu PRECISAVA preservá-la. Talvez ela mesma tenha-me convencido disso, de seu valor. Talvez ela mesmo tenha-me feito acreditar que eu era aquela pequena humanidade que, como o germe de uma criança porvindoura, estava sempre prestes a nascer. A presteza, no entanto, parecia-me com a morte — a iminência perpétua era sempre o pesadelo gélido de uma noite quente (como se a noite mesma o sonhasse! como se eu fosse sonhado!) Sim, sim, tão bem protegida esta humanidade que as pessoas não a reconheciam. Atirado naquela cama como a abnegação da dignidade, eu era o maior germe da inocência, o fulgor do dia. Por isso, eu precisava protegê-lo, precisava resguardá-lo imaculado e, para tal, eu bebia o que quer que fosse misturado com o que quer que fosse — a destruição era a garantia da salvaguarda! Apenas, como toda humanidade, eu era tarado por pernas e estava disposto a por tudo a perder — estou falando aqui de gerações! estou falando da humanidade em uma pequena cápsula! — por um par de pernas bem torneadas, acariciadas por longas meias escuras. Eu era a humanidade prestes a deitar-se com uma prostituta. Eu era a salvação.

sábado, 12 de novembro de 2011

Sonhos e garrafas vazias

Nós sentávamos e contávamos nossos sonhos. Era madrugada e enchíamos as garrafas vazias com promessas. Trazíamos na escuridão uma vida melhor, em suspiros e em silêncios no nosso calar. Onde vivíamos, nós silenciávamos, e tudo que dizíamos era justamente o que não podíamos ter: os sonhos e as promessas. Eram só promessas. Disso, contudo, não sabíamos. Não podíamos nem queríamos saber. Ainda assim, prometíamos e sonhávamos com o empenho de viver. Mas eram promessas, tudo que eram, e somente porquanto as dizíamos, sonhávamos e prometíamos. A vida não se faz de promessas e de sonhos. E isso aprendemos da maneira difícil, pois sempre que os alcançávamos precisávamos substituí-los. Como as garrafas. Tínhamos a noite, um vinho e um ao outro. Mas somente enquanto os tivéssemos todos. No brilho da claridade, na presença da embriaguez ou na míngua da sobriedade, não tínhamos nada. Toda noite era primeira noite — e também a última. De fato, não tínhamos nada, mas o nada nos servia. Brindávamos.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Finados

Não há passagem. Não, e isto é muito duro de se dizer, embora precise ser dito. Mas sabemos todos disso, não o sabemos? A notícia, do contrário, assemelha-se ao romper do sonho infantil do Papai Noel e, conquanto seja risível não o acreditar com justo embasamento na impossibilidade do fato de existir um senhor de dada idade em trajes vermelhos com um saco às costas, acreditamos os nossos mortos. Contudo, não se trata de verificar se o caso se dá ou não se dá, mas de dar ou não dar crédito ao que se quiser. Sim, sim, esta é uma perspectiva muito mais madura e podemos até mesmo trocar justamente alguns socos e ofensas sob amparo dos nossos finados. Estilo Cavaleiros do Zodíaco.

Não que não haja qualquer possibilidade de humor. Certamente há. Minha crença é apenas que tomamos as coisas de maneira invertida: são os mortos que riem de nós. Não somos, no fundo, todos risíveis? Acho, insensatamente, claro, que a definição animale ridiculus nos cai com muito mais propriedade do que animale rationale. Argumentariam, talvez, que esta definição fica suspensa à espera de alguém que possa aplicá-la e que não caracteriza, então, atributo do homem. Claro, ridiculus, em latim, diz: aquele que desperta o riso. O homem, tendo o riso, é aquele que sempre o convida sobre si mesmo. De modo que isto está provado — cientificamente! — por alguma universidade, não preciso perder meu tempo argumentando.

Que digo, então? Que somos todos uns estúpidos (do grego στυπερεσται, antes que me interpretem mal)*  — eu primeiro. Nossos mortos, nossas crenças, tudo derivado desta eterna impossibilidade de conhecimento e desta inamovível vontade de afixá-lo de qualquer maneira. Sim, estas últimas frases inclusas. Também nossos mortos, gostaríamos de retomá-los e afixá-los. Como se sabe, porém, onde a razão não chega, não sabemos se tem lugar o riso e, portanto, não podemos oferecê-lo a quem não o tem. Mas os mortos riem, sim, os mortos riem e fazem-no justamente no dia que lhe dedicamos, pois, de alguma maneira, não o conclamamos como aproximação dos finados, mas, na tentativa de esconjurar, mesmo que temporariamente, o riso, fazemo-lo para livrarmo-nos, nós mesmos, desta pesada definição humana que, como a falha no manuscrito, jamais se pode apagar: somos aqueles que jamais podem livrar-se do riso.

Assim, amigos, proponho o contrário: porque os mortos também riem, convoquemos nossos mortos na risada. Se se finaram, que esta definição seja sempre através do riso. Que a morte, portanto, não seja esta passagem inelutável à seriedade, mas que seja o ecoar contínuo e incansável da definição mais própria daqueles que, como dizemos, já se foram: sua capacidade inevitável de convocar o riso sobre si. Não os lembremos pelo império ou pela obra. Não, lembremo-lhes não através do animale rationale, do homem que se define através da razão, mas através do animale ridiculus, o homem que tem o riso e, sempre convocando este, sempre convoca também seus semelhantes. Não, não levemos este texto a sério. Celebremos.

* Esta palavra sequer existe, mas o resultado de seu emprego neste texto pode ser útil para provar, em ambos os lados, meu amigo, o quão ridículo somos.